segunda-feira, 4 de maio de 2020

A Carta.

Cara Razão,

É com pleno e puro agrado que te escrevo esta carta, a ti que estás em mim numa tal omnipresença que nada mais existe a não seres tu. Escrevo-te com o objectivo de me aproximar por via das palavras do Sol inatingível mas que me vai, quando possível, iluminando.
Quando me deixas na escuridão lágrimas vão caindo como uma cascata de um rio outrora calmo, de corrente subtil. O meu coração, em vez de sangue, bombardeia todo o tipo de sentimentos e emoções desencadeando posteriormente em sofrimento ou em vulgar felicidade – que não é mais do que outro género de sofrimento. Tu sabes, minha cara Razão. Tu sabes que quando me abandonas, por motivos que te são alienáveis, eu deixo de ser o ser que vai escrevendo esta carta, para ser o ser que vai lendo-a, inundando-a de paixão desesperante.
Por este meio, penso (lá está, penso!) poder criar um elo de ligação imutável, indestrutível e inseparável que consistirá por conseguinte numa constante troca de correspondência; mantendo, por sua vez, o rio o seu percurso esperado, sem desagradáveis surpresas. Quero-te (se quero tenho que poder) como o meu maior amor, como a natureza que vai controlando a corrente da minha vida tão verdadeira e correcta quanto puderes. Não deixes que os teus malditos adversários me conquistem, porquanto eu sou teu, não naturalmente, mas por arte; nasci terra de ninguém, fui proclamado pelos demónios das sensações e depois de numerosas e árduas batalhas fui conquistando a minha independência com o intuito de entregar-ta a ti, minha mais-do-que-tudo. Não obstante o inimigo estar não raras vezes à espreita, acredito nas tuas capacidades bélicas de me defender dele e das suas prazerosas e indiscutíveis tentações. Acredito e pretendo que esta carta reforce toda a tua confiança, que apesar de inabalável, é necessário ter em conta toda a precaução, pois se és confiante podes não ser o suficiente (ou não o ser eu) para me transmitires por inteiro e sem hemorragias pelo meio essa confiança.
Querida Razão, as tuas armas são-me indispensáveis e não as quero perder pois a guerra só terminará na morte. Pensamento, ponderação, análise são das armas mais importantes contanto não deixarem de ser mais sofisticadas, eficazes e superiores às armas passionais do inimigo. Peço-te portanto que não deixes de trabalhar nelas e, no que me diz respeito, vou também ajudando utilizando-as da melhor maneira possível. Creio que juntos vamos conseguir ser melhores!
Por fim, terminando como iniciei, declaro todo o meu amor por ti, sabendo eu que é recíproco. Ambos, também o sei, entendemos que este amor não é o Amor que o adversário nos tenta impingir, mas um amor mais alto, mais além, incomensurável. Minha Razão, a ti me dedico, o mesmo é dizer, que a mim me dedico. Juntos somos Uno, juntos somos mais e mais.

Assim me despeço.

Para sempre teu,

O Corpo.

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